Livro Contos Romanos, de Alberto Moravia
Agnese podia ter me avisado, em vez de ir embora assim, sem ao menos dizer: dane-se. Não tenho a pretensão de ser perfeito e se ela tivesse me dito o que é que lhe faltava, poderíamos ter discutido sobre isso. Mas não: durante os dois anos de casamento, nem uma palavra; e depois, numa manhã, aproveitando-se de um momento em que eu não estava, foi embora sorrateiramente, exatamente como fazem as empregadas domésticas quando encontram um lugar melhor. Foi embora e, ainda hoje, seis meses depois que ela me abandonou, não entendi o porquê.
Naquela manhã, depois de ter feito as compras no mercado do bairro (as compras sou eu quem gosto de fazer: conheço os preços, sei o que quero, gosto de negociar e discutir, experimentar e tocar, gosto de saber de qual animal veio o meu bife; de qual cesta, a maçã), tinha saído de novo para comprar um metro e meio de franja para costurar na cortina da sala de jantar. Como eu não queria gastar mais do que tanto, rodei bastante antes de encontrar o que me convinha, em uma lojinha de dell’ Umiltà. Voltei para casa às onze e vinte, entrei na sala de jantar para comparar a cor da franja com a da cortina e logo vi, em cima da mesa, o tinteiro, a caneta e uma carta. Para dizer a verdade, impressionou-me sobretudo uma mancha de tinta, em cima da toalhinha de mesa. Pensei: “Olha só como ela é desleixada… manchou a toalhinha”. Tirei o tinteiro, a caneta e a carta, peguei a toalhinha, fui à cozinha e ali, esfregando com força um limão, consegui tirar a mancha. Depois voltei para a sala de jantar, recoloquei a toalhinha no lugar e só nesse momento me lembrei da carta. Estava endereçada a mim: Alfredo. Eu a abri e li: “Limpei a casa. O almoço, faça-o você, pois já está acostumado. Adeus. Estou voltando para a casa de minha mãe. Agnese”. Por um momento não entendi nada. Depois reli a carta e, finalmente, entendi: Agnese tinha ido embora, tinha me abandonado depois de dois anos de casamento. Por força do hábito, coloquei a carta na gaveta do aparador onde coloco as contas e a correspondência e sentei em uma cadeirinha junto à janela. Não sabia o que pensar, não estava preparado para isso e quase não conseguia acreditar. Enquanto eu estava refletindo assim, o olhar deslizou para o chão e vi uma pequena pluma branca que deveria ter soltado do espanador quando Agnese estava tirando o pó. Recolhi a pluma, abri a janela e a joguei fora. Daí, peguei o chapéu e saí de casa.
Mesmo caminhando, segundo um vício meu, uma lajota sim e outra não da calçada, comecei a me perguntar o que eu poderia ter feito para a Agnese para que ela me abandonasse com tanta maldade, quase como se quisesse me fazer uma afronta. A primeira coisa em que eu pensei foi se Agnese poderia reprovar-me por alguma traição, mesmo mínima. Respondei rápido: nenhuma. Nunca me senti muito atraído pelas mulheres, não as compreendo e elas não me compreendem; mas desde o dia em que me casei, pode-se dizer que elas deixaram de existir para mim. A tal ponto que Agnese, ela mesma, me cutucava de vez em quando, perguntando-me: “O que você faria se se apaixonasse por uma outra mulher?”. E eu respondi: “Não é possível, amo você e esse sentimento vai durar por toda a vida”. Agora, pensando melhor, parece que aquele “por toda a vida” não a deixara feliz, ao contrário: fez uma cara amarrada e ficou calada. Passando a uma outra ordem de pensamentos, comecei a examinar se , por acaso, Agnese não teria me deixado por causa do dinheiro e, em suma, do tratamento que eu dava a ela. Mas, dessa vez também, percebi que eu estava com a consciência tranquila. Dinheiro, é verdade, eu só lhe dava em ocasiões excepcionais, mas que necessidade ela tinha de dinheiro? Eu estava sempre lá, pronto para pagar. E o tratamento, veja bem, não era tão mal: julguem vocês mesmos. Cinema duas vezes por semana; ao café, duas vezes, sem importar se ela tomava um sorvete ou apenas um espresso; umas duas ou três revistas por mês, o jornal todos os dias; no inverno, às vezes, até uma ópera; no verão, férias em Marino, na casa do meu pai. Isto no que se refere aos divertimentos; no que diz respeito às roupas, Agnese podia se lamentar menos ainda. Quando lhe faltava alguma coisa, fosse um sutiã, meias de seda ou um lenço, eu estava sempre pronto: ia com ela às lojas, escolhia com ela o artigo e pagava sem dar um pio. A mesma coisa no que diz respeito às costureiras e modistas; não houve uma só vez que ela me dissesse: “Estou precisando de um chapéu, estou precisando de um vestido”, que eu não lhe respondesse: “Vamos, eu te acompanho”. Além do mais é importante reconhecer, Agnese não era exigente: depois do primeiro ano, parou quase completamente de fazer roupas para ela. Aliás, era eu agora, a lembrá-la da necessidade desta ou daquela peça. Mas ela me respondia que tinha as coisas do ano anterior e que aquilo não tinha a menor importância; tanto que eu cheguei a pensar que, neste aspecto, ela fosse diferente das outras mulheres e não ligasse para o fato de se vestir bem.
Enfim, problemas de coração e de dinheiro, nenhum. Restava aquilo que os advogados chamam de incompatibilidade de gênios. Então me perguntei que incompatibilidade de gênios podia existir entre nós se, em dois anos, nunca houve uma discussão, nem uma sequer? Estávamos sempre juntos, se essa incompatibilidade existisse, ela teria surgido. Mas Agnese nunca me contradizia, ou melhor, pode-se dizer, nem mesmo falava. Certas noites que passávamos no café ou em casa, era uma dificuldade ela abrir a boca, era sempre eu quem falava. Não nego, eu gosto de falar e ouvir-me falando, especialmente se estou com uma pessoa com a qual me sinto à vontade. Tenho uma voz calma, regular, sem altos nem baixos, razoável, fluída e, se afronto um assunto, destrincho-o de cabo a rabo em todos os seus aspectos. E os assuntos que eu prefiro são os domésticos: eu gosto de discorrer sobre o preço das coisas, sobre a disposição dos móveis, sobre a cozinha, sobre o aquecedor, enfim, todo tipo de bobagem. De falar dessas coisas eu não me cansaria nunca; tenho tanto prazer que frequentemente percebo que recomeço, com os mesmos raciocínios. Mas, sejamos justos, com uma mulher é disso que temos que falar: caso contrário, sobre o que se poderia conversar? Agnese, além disso, escutava-me com atenção, pelo menos assim parecia. Só uma vez, enquanto eu lhe explicava o funcionamento do aquecimento elétrico, me dei conta de que ela estava dormindo. Perguntei-lhe acordando-a: “Mas o que há, você está se aborrecendo?”. Ela respondeu logo: “Não, não, eu estava cansada, nesta noite eu não dormi”.
Os maridos normalmente têm um escritório ou uma loja ou então não fazem nada e vão passear com os amigos. Mas, para mim, o meu escritório, a minha loja, os meus amigos eram Agnese. Nunca a deixava sozinha, estava sempre a seu lado, até mesmo, vocês não vão acreditar, quando ela cozinhava. Sou apaixonado por cozinha e, todos os dias, antes das refeições, enfiava um avental e ajudava Agnese na cozinha. Eu fazia um pouco de tudo: descascava as batatas, limpava as vagens, preparava o tempero, cuidava das panelas. Ajudava tanto que ela muitas vezes me dizia: “Olha, faça você… estou com dor de cabeça… vou me deitar um pouco”. E então eu fazia a comida sozinho; com a ajuda do livro de receitas, era capaz até de experimentar pratos novos. Uma pena que Agnese não fosse gulosa; aliás, nos últimos tempos, ela vinha perdendo o apetite e mal tocava na comida. Uma vez ela me disse, assim, de brincadeira: “Você, nasceu homem por engano… você é uma mulher… ou melhor, uma dona de casa”. Devo reconhecer que nesta frase havia alguma coisa de verdade: de fato, além de cozinhar, eu gostava de lavar, passar, costurar e até, nas horas de ócio, refazer as barras bordadas dos lenços. Como eu disse, não a deixava nunca, nem mesmo quando alguma amiga ou a mãe vinham visitá-la; nem mesmo quando lhe deu na telha, não sei por que, tomar aulas de inglês: além de estar ao seu lado, eu também resolvi aprender aquela língua tão difícil. Vivia tão grudado nela que às vezes me senti até mesmo ridículo: como naquele dia em que não tendo entendido uma frase que ela me dissera em voz baixa, em um café, segui-a até o banheiro e o servente parou-me, advertindo-me que era o recinto das senhoras e eu não podia entrar. É, um marido como eu não é fácil de encontrar. Com frequência ela me dizia: “Devo ir a tal lugar, ver tal pessoa que não te diz respeito”. Mas eu respondia: “Eu também vou… não tenho nada para fazer”. Ela respondia: “Por mim, pode vir, mas já vou avisando… você vai se aborrecer”. Ao contrário, não me aborrecia e depois lhe dizia: “Viu como não me aborreci?”. Enfim, éramos inseparáveis.
Pensando nessas coisas e sempre me perguntando em vão porque Agnese me deixara, cheguei à loja de meu pai. É uma loja de objetos sacros, na região de da piazza della Minerva. Meu pai é um homem ainda jovem, cabelos pretos, enrolados, bigodes pretos e, debaixo dos bigodes, um sorriso que eu nunca entendi. Talvez pelo hábito de tratar com os padres e as pessoas devotas seja muito doce, calmo, sempre bem-educado. Mas a minha mãe que o conhece diz que ele, por dentro, é uma pilha de nervos. Passei por todas aquelas vitrines, cheias de casulas e de cibórios, e fui direto ao fundo da loja, onde fica a sua escrivaninha. Como de costume, estava fazendo contas, mordendo o bigode e pensando. Eu disse a ele, ofegante: “Pai, Agnese me abandonou”.
Ele ergueu os olhos e me pareceu que, por debaixo dos bigodes, ele sorria, mas talvez tenha sido só impressão. Disse: “Sinto muito, sinto muito mesmo… como foi que aconteceu?”.
Contei a ele o que tinha acontecido. E concluí: “É claro, eu sinto muito… mas gostaria de saber por que ela me deixou”.
Ele perguntou perplexo: “Você não entendeu?”.
“Não.”
Ele ficou um momento calado e depois disse com um suspiro: “Alfredo, eu estou muito triste, mas não sei o que lhe dizer… você é meu filho, eu o sustento, gosto de você… mas na sua mulher quem tem que pensar é você”.
“Sim, mas por que ela me deixou?”
Ele balançou a cabeça: “Eu, no seu lugar, não entraria em detalhes… deixe pra lá… que te interessa saber os motivos?”.
“Eu me interesso e muito… mais do que tudo.”
Naquele momento entraram dois padres. Meu pai levantou-se e foi ao encontro deles, dizendo-me: “Volte mais tarde… nós conversamos… agora eu tenho o que fazer”. Entendi que com ele eu não podia contar e saí.
A casa da mãe de Agnese não era distante, no corso Vittorio. Pensei que a única pessoa que poderia explicar-me o mistério de sua partida fosse a própria Agnese e fui até lá. Subi correndo as escadas, esperei na sala, Mas, em vez de Agnese, veio a mãe, com os cabelos pretos tingidos, as maçãs dos rosto pintadas, sorridente, dissimulada, falsa. Estava de robe, com uma rosa no peito. Ao me ver, disse, com cordialidade fingida: Oh, Alfredo, que surpresa, você por aqui?”.
Respondi: “A senhora sabe o porquê, mamãe. Agnese me deixou”.
Ela disse, calma: “Sim, ela está aqui… meu filho, o que você vai fazer? São coisas que acontecem”.
“Como, a senhora vai me responder desta maneira?”
Ela refletiu um momento e depois me perguntou: “Aos seus pais, você já contou?”.
“Sim, eu contei para o meu pai.”
“E o que foi que ele disse?”
Mas o que podia interessar a ela saber o que o meu pai dissera? Respondi de má vontade: “A senhora como é meu pai… ele disse que eu não devo entrar em detalhes.”
“Ele está certo meu filho… não entre em detalhes.”
“Mas enfim”, disse inflamado, “por que ela me deixou? o que eu fiz para ela? por que vocês não me dizem?”
Enquanto eu falava, completamente enfurecido, bati o olho em cima da mesa. Estava coberto com um feltro e sobre o feltro havia uma toalha de centro branca, bordada, e sobre ela um vaso cheio de cravos vermelhos. Mas a tolha do centro estava fora do lugar. Mecanicamente, sem nem mesmo perceber o que estava fazendo, enquanto ela me olhava sorrindo e não me respondia, levantei o vaso e coloquei a toalhinha de centro no lugar. Ela disse, então: “Muito bem… agora a toalhinha está exatamente no lugar… eu nunca tinha percebido, mas você viu logo de primeira… muito bem… e agora é melhor que você vá embora, meu filho”.
Nesse meio tempo, tinha se levantado e eu também me levantei. Gostaria de ter perguntado se podia ver Agnese, mas entendi que era inútil; e depois temia, se a visse, perder a cabeça, fazer ou dizer alguma bobagem. Assim fui embora e desde aquele dia nunca mais revi minha mulher. Talvez um dia ela volte, considerando que maridos como eu não se encontram todos os dias. Mas, pela soleira da porta de minha casa, ela não passa sem antes explicar por que me abandonou.